Mergulhando em Capitão Fantástico

Saramago diz que é preciso sair da ilha para ver a ilha; voltar, verbo que pode abarcar outros, é essencial para transformar o que não está bom

Maracajueira
4 min readFeb 20, 2021

Com o slogan “Power to the people, stick it to the man” —poder para o povo, dane-se o sistema— Capitão Fantástico traz na sua essência uma crítica ao capital e aos valores tradicionais da sociedade ocidental moderna em variados aspectos. O estilo de vida isolado da urbanização proposta por Ben e Leslie, ele, protagonista, ela, personagem onipresente ao longo da trama, é defendida e se apresente como uma redoma que protege a família da contaminação viral no que tange a reprodução e falta de originalidade que estamos acostumados.

A adoção dessa proposta alternativa de vida se baseia no cooperativismo entre seus membros, onde há uma convivência horizontalizada, sem hierarquia, e o objetivo final é o bem comum.

Outra perspectiva apresentada no filme é o da educação doméstica, uma vez que Ben é o tutor dos filhos. A metodologia empregada, baseada nas sete artes liberais —lógica, gramática, retórica, aritmética, astronomia, música e geometria— promove um desenvolvimento intelectual avançado aos filhos, de forma precoce até. Treinamento físico e técnicas de sobrevivência na selva complementam a grade curricular.

O senso de tomar distância ao máximo do capitalismo é o alicerce do modo de sobrevivência adotado pela família que, ironicamente, adotou o sobrenome Cash. Morando em uma cabana sem luz elétrica, sem tecnologias básicas, como celular ou computador, produzindo e caçando seu próprio alimento, Ben e seus filhos usufruem apenas do necessário e trazem a reflexão sobre nosso modo atual de consumo.

Apesar de levantar questões pertinentes e fomentar o debate sobre valores adotados na sociedade moderna, é válido lembrar que antes de mais nada Capitão Fantástico é uma fábula sobre como é difícil desafiar o sistema, mesmo abrindo “mão dele”.

Até porque em diversas cenas é nítido que os Cash usufruem de certa forma do sistema, mesmo que em pequena escala, revendendo produtos que arrecadam na floresta, por exemplo. É uma renúncia parcial. Outro questionamento levantado em paralelo é o quão extremo se deve ir para defendermos ideais.

Durante as primeiras tomadas na floresta, onde nos é apresentada a rotina da família, a sensação libertária aparente, possivelmente pelo convívio diário com a natureza, vai de encontro com a rígida rotina de exercícios e estudos imposta por Ben. Limites pessoais são deixados de lado; o luto é deixado de lado; o tempo individual para lidar com questões pessoais, que todos temos, de diversos modos; é deixado de lado. A rotina e divisão de tarefas foi prescrita pelo patriarca da família, que em alguns momentos perpassa-nos a ideia de uma rigidez exacerbada, o que reforça a ideia de Rousseau: Se a lei não é auto imposta, a liberdade vira escravidão.

A ideia de criarem filósofos-reis, em referência a República, de Platão, embasou o método de formação dos filhos. Isso foi exposto em uma das falas de Leslie, em que exalta a alegria de como a criação dos filhos parecia perfeita. Na sociedade utópica de Platão, o conhecimento era o guia das ações humanas e como tal, quem detivesse de maior conhecimento seria a elite, o Estado. Somente através de uma educação privilegiada as pessoas teriam capacidade de gerir politicamente uma sociedade (LIMPIMMAN, 2017).

O pecado de Ben reside na exclusão de sua família de contato social externo. Por mais que o intelecto de seus filhos estivesse acima da média e que seu modo de vida aparentasse ser perfeito, não havia contrapontos, o que só fortalecia a conjuntura de perfeição. É o que atualmente atende por viés de confirmação: a tendência de, uma vez adotada uma crença, só buscar exemplos que a confirmem. Sem debate e contra argumentos só existe alienação.

Vivendo nessa bolha limitadora, Ben reduziu todo o potencial da prole apenas no campo teórico o que provocou um contraste quase que bizarro com a “civilização”. Na cena do jantar com seus primos, os filhos de Ben são tratados como esquisitos, fora do padrão. Entretanto, quando pressionado pela irmã, Harper, de que as crianças precisavam ir a escola, Ben comprova mais uma vez a superioridade intelectual de sua filha mais nova com os primos adolescentes, atestando a funcionalidade de seu método.

A mensagem ao final do filme é o equilíbrio. O caminho do meio. Não é sua ausência na civilização capitalista e conservadora através do isolamento que fará a mudança que você quer, mas sua presença e exposição de alternativas, perspectivas, diálogo, aproximação. Afinal, vivemos na sociedade que desejamos transformar.

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Maracajueira

Vi alguém compartilhar um texto daqui. Depois vi outro. Daí pensei: ué, eu também posso. Aí tô aqui.